por_Kamille Viola • do_Rio
Antes de qualquer coisa, Chico Buarque sonhava ser escritor. Na adolescência, buscando se aproximar do pai, o historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, passou a se dedicar à leitura e se encantou. “Ele vivia fechado na biblioteca, e eu, que tinha medo de penetrar naquele território, comecei a ler algumas coisas”, contou o cantor e compositor no livro-agenda “Chico Buarque, Anotações com Arte” (2005). Mas, felizmente, no meio do caminho tinha a música “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, lançada com meses de diferença por Elizeth Cardoso e por João Gilberto — e o que era apenas brincadeira com a família e com os amigos passaria a ser levado a sério por Chico: a música.
Com a cantora Simone durante uma gravação nos anos 1980
Hoje, o artista, que em 19 de junho chegou aos 80 anos, se divide entre livros e canções. Mas, quando finalmente se assumiu escritor, com o romance “Estorvo”, lançado em 1991 — embora tenha publicado em 1974 a novela “Fazenda Modelo” —, ele já havia construído uma longa e brilhante estrada na música, tendo sido chamado por Tom Jobim de “meu herói nacional”, “gênio da raça” e “salvação do Brasil”. A aclamação também viria com a literatura, com a qual ganhou três vezes o Prêmio Jabuti, o mais importante do Brasil, além de ter vencido o Camões, o mais relevante da língua portuguesa, e o Oceanos. Mas a contribuição do artista para o Brasil com sua obra musical já era gigante e reconhecida mundo afora.
Para o jornalista e crítico musical Hugo Sukman — que entrevistou o cantor e compositor por diversas vezes e, desde 1998, com “Carioca”, faz os textos de divulgação dos álbuns dele —, Chico foi o artista que levou mais longe a ideia da canção popular como arte. “Acho que ninguém no mundo fez isso. Eu digo numa linhagem que vem de [George] Gershwin (compositor estadunidense considerado um dos maiores do século XX)”, analisa. “É um artista trabalhando numa linguagem muitas vezes tida como banal, que ele de fato levou a um outro nível”, elogia.
Sukman cita como exemplo a música “As Caravanas”, do álbum “Caravanas”, de 2017. A letra fala da tensão racial nas praias cariocas com a chegada dos grupos de pessoas (em sua maioria, negras) vindas de bairros distantes em um dia de sol. Mas também faz referências às caravanas de refugiados contemporâneos e ao clássico romance “O Estrangeiro”, de Albert Camus, que descreve o assassinato de um árabe por um francês numa praia da Argélia e seu julgamento. Assim como a classe média apavorada na obra de Chico, o assassino culpa o sol por seu ato.
(Na obra de Chico) há beleza plástica impecável, mas há também muito sangue rolando, e lágrimas, e tesão, tudo. Pouquíssimos no mundo conseguem unir essas coisas todas.”
SimoneJá a inspiração musical parte de “Caravan”, do jazzista estadunidense Duke Ellington, que se apropriou do beguine, ritmo cubano que esteve na moda nos Estados Unidos nos anos 1930, e vai se tornado um funk, que é a música dos personagens da cena descrita pela letra. “Ele consegue ver no ônibus que traz as pessoas da favela à praia o navio negreiro no Atlântico e o conflito entre os muçulmanos da África com os europeus. E consegue botar tudo isso numa canção que, na verdade, é uma simples crônica de algo que acontece semanalmente no Rio de Janeiro”, observa Sukman.
Não é à toa que Chico Buarque é um dos compositores mais gravados por uma legião de grandes intérpretes brasileiros. A cantora Simone é um deles. Ela teve numa criação de Chico um dos mais fortes impulsos à sua carreira. Feita para o filme “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, “O Que Será” tem três versões, que marcam passagens diferentes da trama: “Abertura”, “À Flor da Pele” e “À Flor da Terra”. A partir dali, a soteropolitana estourou nacionalmente.
“Eu ainda estava começando, tinha três anos de estrada apenas. Ter minha voz defendendo a principal música dessa trilha sonora fez com que muita gente começasse a se aproximar do meu trabalho. Foi um estouro de bilheteria. E a música foi junto”, lembra a artista, que cita o dueto com Chico na versão dele para “Iolanda”, de Pablo Milanés, em seu álbum “Desejos” (1987), como outra música marcante.
Ela conta que admira o “cuidado absoluto” que Chico Buarque tem na construção das letras, na escolha de cada palavra, nas rimas, e observa que isso é sempre ressaltado por todos, “afinal, é inegável”. “Mas eu quero aqui falar de seu perfeccionismo na criação de melodias e de harmonias. Ele não deixa passar nada que não esteja absolutamente perfeito formalmente”, elogia. “E o mais espantoso é que esse cuidado formal não atrapalha em nada os aspectos emocionais, o calor das canções. Há beleza plástica impecável, mas há também muito sangue rolando, e lágrimas, e tesão, tudo. Pouquíssimos no mundo conseguem unir essas coisas todas”, derrete-se Simone.
Praticando o violão para as fotos de divulgação do disco 'Caravanas'
O empenho com que Chico se dedica a esculpir suas canções é perceptível pelas muitas obras-primas que criou ao longo de sua carreira. Diretor musical do artista, o maestro e violonista Luiz Claudio Ramos é testemunha desse esforço. Ramos trabalhou com o cantor e compositor pela primeira vez em 1973, quando gravou a música “Bárbara”, da trilha da peça “Calabar”, de Chico e Ruy Guerra. De lá para cá, participou de outros projetos dele, até que em 1993, com “Paratodos”, passou a assinar a direção musical de seus discos e shows.
Em cena: reservado, tem o palco como um dos poucos lugares onde se deixa ver publicamente
“Uma das coisas que eu mais admiro no Chico é que ele se esmera em fazer o melhor possível, em todos os níveis, de compositor e de intérprete. Ele tem essa preocupação. A maioria se acomoda, e o Chico nunca se acomodou”, garante.
Em entrevista a Augusto Massi na Folha de S. Paulo, em 1994, o cantor e compositor falou que nunca achava que seus trabalhos estavam prontos e que chegava uma hora em que colocava um ponto final para “não ficar maluco”. Mas que, passado um certo tempo, olhava para trás e perguntava: “Por que eu não fiz isso? Por que não fiz aquilo?”.
“Outro dia eu li que o pintor Pierre Bonnard ia com seus pincéis escondidos para o museu onde estavam as obras dele expostas. Quando o vigia não estava olhando, ele dava uma pincelada e corrigia um trabalho de dez anos atrás. Eu me identifico perfeitamente com isso”, contou Chico.
Prova disso é que, recentemente, durante a turnê “Que Tal Um Samba?”, com a qual percorreu o país entre 2022 e 2023, ele decidiu trocar uma palavra da letra de seu clássico “Beatriz”, parceria com Edu Lobo para a trilha sonora do balé “O Grande Circo Místico”, de 1983. Chico mudou "será que é divina a vida da atriz" para "será que é divina a sina da atriz". A cantora Mônica Salmaso, que participou de todos os shows, nos quais interpretava essa música, chegou a ficar preocupada. “Ela falou: ‘Nossa, você sabe que o Brasil inteiro vai achar que eu estou cantando errado, né? Mas eu estou aqui do teu lado, então beleza, pode dar a pincelada que for’”, diverte-se o cantor e compositor Moyseis Marques.
O sambista conheceu Chico Buarque em 2014, quando deu vida a Max Overseas, o anti-herói do musical “Ópera do Malandro”, escrito pelo compositor, em uma nova montagem. Depois, participou do documentário “Chico: Artista Brasileiro” (2015), cantando “Mambembe”, e gravou com o ídolo a faixa “Subúrbio”, de autoria do carioca, em seu DVD “Passatempo” (2019). Moyseis tem um espetáculo só com o repertório do ídolo e, no dia do aniversário dele, apresentou ao lado de Cláudio Lins o show “Chico 80” no Dolores Club, no Rio.“Ele é um farol que ainda vai brilhar por muitos anos. É uma obra que você nunca cansa de revisitar, que está muito viva. Uma pessoa que continua produzindo, talvez em menor escala no sentido quantitativo. ‘Caravanas’ (2017), que foi o último disco dele antes de ‘Que Tal Um Samba?’ (música mais recente de Chico, de 2022), ganhou vários prêmios, até Prêmio Multishow, que é de música pop”, exemplifica.
Reservado com sua vida pessoal e avesso a datas, Chico não fará turnê ou álbum comemorativos. Em agosto, lança seu próximo livro, “Bambino a Roma”, sobre o período de sua infância em que viveu na cidade com a família.
E, se suas entrevistas são cada vez mais rarefeitas, ele segue assumindo posicionamentos e dando seu recado por meio de sua obra. “Ele tem uma envergadura intelectual incomum, mas não perde esse lado humano. Em ‘Que Tal Um Samba?’, fala em ‘uma dor filha da puta’. Quem tem boa percepção vê que ele está sempre tentando se aproximar das camadas mais populares no que diz respeito à redução da desigualdade. Em ‘As Caravanas’, também fala sobre isso. Ele coloca o ofício dele, o que de mais importante sabe fazer, em função da projeção de uma utopia, talvez, de redução da desigualdade. Isso é o mais admirável nele”, pontua Moyseis Marques, que resume o sentimento de muitos: “Como dizia o Tom Jobim, que sorte nossa que o Chico é brasileiro, que sorte nossa que ele fala português.”