por_Kamille Viola • do_Rio
No recém-lançado álbum de pagode de Gloria Groove, “Serenata da GG”, seis músicas são assinadas por uma mesma compositora. Em “Afrodhit” (2023), de Iza, também foram seis as faixas emplacadas, além de cinco no "Numanice 3: Ao Vivo” (2024), de Ludmilla, e mais uma gravada pela cantora na trilha do remake do filme “A Cor Púrpura”. Só de composições dela lançadas por outros artistas são mais de 200. Prestes a completar 31 anos, no dia 8 de julho, Lary vem se firmando como uma autora cada vez mais requisitada, por intérpretes dos mais diversos gêneros musicais.
Em um mercado dominado por homens, essa carioca que cresceu em Niterói (RJ) surfa a boa onda para impulsionar sua própria carreira de cantora: ela vem lançando as faixas de “Com Amor, Lary — Pt. 1 (Ao Vivo)", seu primeiro projeto audiovisual, gravado em um lugar emblemático da cidade onde Laryssa Goulart (seu nome de batismo) cresceu, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói.
“A turnê desse projeto vai abrir em outubro, vai passar por teatros em todo o Brasil”, adianta à revista UBC.
Nesta entrevista, Lary lembra como percebeu sua conexão especial com a música, fala sobre a importância dos songcamps em seu processo de criação e sobre a importância do aumento da presença feminina entre os compositores, para que a música reflita também as mudanças do mundo.
VEJA MAIS
Lary no clipe de “Em Busca da Minha Sorte (Ao Vivo)”
Você começou a compor para decorar a matéria da escola, foi isso?
Gosto muito de compor com outras pessoas. Claro que existe um número ótimo, eu não gosto de compor numa roda com seis, sete.”
LARY: Foi isso. Eu acho que foi ali que eu descobri… Eu sempre amei música. Eu sempre fui muito sensível à música. Desde pequenininha, minha mãe colocava algumas canções para tocar, às vezes uma abertura de novela mais triste e tal, e eu chorava de emoção. Então, a música sempre me tocou muito, e fui pegando amor por ela. A minha mãe tinha karaokê em casa, a gente cantava junta, eu ia aprendendo as canções de Elis Regina, Marisa Monte, nunca infantis. E aí, quando eu comecei a ter que estudar mesmo, um pouquinho mais velha, lá pelos 12 anos, só decorava uma matéria escrevendo música, fazendo paródia. Descobri ali um talento.
E dali para se tornar profissão como é que foi?
Apesar de muito artística, sempre fui de exatas. Fiz Engenharia de Produção. No meio do curso foi quando comecei a fazer algumas participações em shows de amigos que sabiam que eu gostava de cantar e me chamavam. E foi numa dessas participações que eu me vi ali apaixonada pela música e virando uma chavinha de não querer mais ver a música só como um hobby, mas sim como um trabalho. Foi no meio da faculdade que vi que eu queria trabalhar com isso. Escolhi me formar (em 2016) e, depois, comecei a buscar a minha carreira. Comecei cantando em barzinho, mas, em paralelo, ia para o estúdio produzir, e o que eu produzia era composição minha, então foi tudo muito junto com a minha carreira de cantora também.
E quando foi que outros artistas começaram a gravar suas composições?
Foi no meio da pandemia, em 2020.
Quem foi o primeiro?
Foi a MC Rebecca, foi um funk que falava de pandemia, “Tô Presa Em Casa”. A partir disso, passei a ser convidada para participar de songcamps. Começou de fato pós-pandemia a minha carreira de compositora mesmo, quando passei de fato a ser gravada por artistas. E veio o primeiro lançamento de uma composição minha que teve uma repercussão nacional, a música “Love Love”, do Naldo com a Melody. Então comecei a ser mais convidada ainda para mais camps e para projetos de artistas. Tem sido bem legal, porque a minha carreira de compositora, que teoricamente é mais recente, escrevendo para outros artistas, acabou que tomou uma proporção bem maior do que a minha própria carreira como intérprete. Uma coisa acaba ajudando a outra, também.
Às vezes o compositor fica um pouco escondido, mas seu sucesso nessa função fez com que sua carreira como cantora começasse a ganhar espaço. Quando você sente que foi a virada?
Foi quando comecei a me tornar uma compositora relevante, quando passei a ser procurada pelos artistas e a ganhar mais respeito como compositora, e a circular em meios em que, como cantora, ainda não circulava. A composição me abriu portas e cortou caminhos. Também acho que eu soube usar na hora certa as redes sociais a meu favor, a fazer um marketing, porque existem compositores com muitos, muitos, muitos mais hits que eu, mas que acabam não fazendo essa propaganda, não postam para todo mundo saber. Aproveitei que estou acostumada a criar conteúdo, que eu sou cantora, além de compositora, e comecei a fazer vídeos dizendo que é a composição minha, a mostrar prévias de músicas que ainda não tinham sido gravadas… E isso passou a despertar o interesse dos próprios artistas em gravar essas músicas. Tudo me trouxe também números para carreira artística, uma base de fãs nova e tudo mais.
Na primeira vez em que uma música sua teve repercussão nacional, quando o Naldo e a Melody gravaram ‘Love Love’, como você se sentiu?
Acho que a primeira sensação é você querer falar em todos os lugares em que passa e ouve a canção tocando, querer fazer vídeo e falar “gente, essa música é minha, eu que escrevi.” Porque ainda é muito pouco falado sobre isso. Por exemplo, assim que a faixa foi lançada, eu postei um vídeo falando: “Vocês sabiam que essa música fui eu que escrevi?”. E muitas pessoas vinham, revoltadas, falar: “Para de dizer mentira, essa canção é da Melody!”. Algumas pessoas não conseguem conceber que às vezes quem está cantando é só o intérprete, não é autor da obra. Então, nesse primeiro momento, foi uma mistura de sentimentos, mas de muita gratidão, de muita euforia de ver todo mundo cantando.
Qual a importância dos songcamps para você compor hoje?
Eu acho os songcamps, principalmente quando são direcionados para um certo artista ou projeto, muito proveitosos. Acaba que juntam vários compositores com um briefing determinado, e é muito mais certeiro do simplesmente sair mandando coisas para um intérprete que está em processo de busca de repertório. Gosto muito de compor com outras pessoas. Claro que existe um número ótimo, eu não gosto de compor numa roda com seis, sete pessoas. Acho que eu mais três, eu e mais dois (somos o número ideal) para que surjam as ideias que conseguimos ir lapidando. Quando a gente escreve sozinho, tem aquela ideia e perde um pouco o senso crítico: “Será que isso está realmente muito bom?”. Quando se está com outras pessoas, tem ali mais duas ou três cabeças pensantes, que podem gostar muito ou não gostar da sua ideia, ou então gostar, mas mudá-la um pouquinho e deixar ainda melhor. É muito enriquecedor. A gente acaba sempre aprendendo mais, com outros métodos, formas de compor que são muito diferentes de compositor para compositor.
E você ainda compõe como antes, sozinha em casa?
Eu acabei de lançar até uma música, “Tua Saudade”, no meu projeto autoral, que é uma composição só minha. Mas é muito raro, porque tenho sempre sido chamada para ir para songcamps. Ou, então, já tenho sessões com compositores que são parceiros toda semana… Acaba que eu guardo os meus melhores temas para já escrever com meus parceiros, porque sei que o resultado vai ser melhor. Mas comecei a escrever sozinha. E pirava em casa fazendo minhas composições, e de vez em quando eu gosto, mas acho que é até mais por hobby do que por um trabalho.
Você compõe pagode, sertanejo, funk… Como vê essa sua facilidade de transitar pelos gêneros?
Acho que talvez esse seja o meu ponto mais forte como compositora: conseguir chegar numa roda e absorver o que o artista quer e saber ser bem versátil. Acho que essa versatilidade me ajuda muito. E sinto de fato facilidade em transitar por estilos diferentes. Eu me sinto uma esponjinha, sabe? Estou ali, pego o que a pessoa está pedindo, e simbora, vamos resolver.
Às vezes você tem ciúme de alguma composição sua? Já pensou ‘queria ter gravado essa’?
Olha, eu acho que não chega a ser ciúme, mas uma sensação de “caramba, eu gravaria”. Agora, a partir do momento em que você passa a entender como é o jogo, sabe que daqui a algum tempo você pode gravar essa música. Eu, sendo autora, posso regravar em algum momento da minha carreira. E, se a música estourar com outro artista, vai ser ótimo para mim também. Por exemplo, essa música agora da Gloria Groove (“Nosso Primeiro Beijo”) — aliás, praticamente todas as músicas que ela gravou no projeto — eu supergravaria. Mas fiquei tão feliz de ela gravar, porque é o público, é o Brasil ouvindo o que eu falei, mesmo que eu não seja na minha voz. Claro que é diferente a sensação de a pessoa ali ouvindo a sua música na sua voz, né? Tem aquela coisa, a gente é artista, a gente gosta de palco, a gente gosta de holofote. Mas eu tenho tanta certeza do meu projeto, do meu repertório, que tudo que eu faço, eu falo “ah, eu também posso fazer outra dessa para mim.”
No Brasil, a gente tem uma uma diferença muito grande do número de compositores para o número de compositoras. Na UBC, por exemplo, as mulheres são só 17% dos filiados. Como você se sente sendo mulher num meio que ainda é dominado pelos homens, principalmente entre os autores de sucessos?
É um mix de sentimentos. Eu me sinto muito honrada de estar abrindo portas. Por exemplo, sou a primeira mulher compositora de quem o Mumuzinho vai gravar uma música. Eu estava no songcamp dele, que tem uma carreira aí de anos, já superconsagrado, e ele falou isso: “Cara, eu nunca gravei música de mulher.” E aí é um mix de sentimentos: “Nossa, que gratidão de ser a primeira, que honra de estar abrindo essa porta.” E, ao mesmo tempo, que péssimo, porque a gente já está em 2024, não era para isso estar acontecendo. E a questão não é ele especificamente, são muitos artistas que nunca gravaram canção de mulher. Eu tenho muito orgulho do time de compositoras que conheço, que são mulheres incríveis, muito boas no que fazem, muito competentes, muito criativas, mas acho que a gente ainda está muito longe de conquistar tudo que merece. Ainda temos muito pouca oportunidade, ainda somos pouco ouvidas, ainda temos que nos proteger nos lugares. Eu confesso que sinto medo de ir para alguns determinados songcamps, porque não sei quem vai estar lá, eu sei que sou a única mulher. Vou de roupa larga, essas coisas que homem nenhum nunca vai cogitar para ir compor, porque eu penso: “Será que, se eu estiver com uma roupa muito justa, eles vão, sei lá, levar a sério as minhas ideias? Ou vão interpretar de outra forma?”. Isso é horrível. Mas enfim, eu acho que a gente ainda tem muito o que alcançar. E as redes sociais também ajudam muito a gente a ganhar esse espaço, a divulgar o nosso trabalho. Eu conheço muitas mulheres incríveis que precisam de mais holofote.
Às vezes estou em rodas onde a galera dá umas ideias de frases que são muito machistas. Eu falo: 'Gente, isso não cabe mais!'”
Durante muito tempo, com algumas exceções de compositoras maravilhosas, vimos as mulheres cantando músicas compostas por homens. Hoje isso já não é tão unânime. Qual a importância de ter essas histórias também contadas pelo olhar de mulheres?
Ah, eu acho que sim, o mundo está mudando né? Muitas coisas hoje não são mais aceitas, muitas ideias hoje, graças a Deus, não são mais aceitas. Às vezes estou em rodas onde a galera dá umas ideias de frases que são muito machistas. Eu falo: “Gente, isso não cabe mais! Mesmo sendo homem cantando, não cabe falar esse tipo de coisa, olha onde você está colocando a mulher, nessa situação.” E aí os caras ficam até sem graça: “Caraca, é verdade, é verdade.” Então eu sinto que eu tenho um papel até social dentro desses camps geralmente só de homens. É legal ter essa visão da mulher, essa sensibilidade de falar aquilo que a gente quer ouvir também do homem cantando. •