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Essa guia é minha

Como o sertanejo se viu envolvido num esquema de roubo de canções para publicação em plataformas digitais — e ninguém ainda foi punido por isso

por_Alessandro Soler e Ricardo Silva de_São Paulo

Como o sertanejo se viu envolvido num esquema de roubo de canções para publicação em plataformas digitais — e ninguém ainda foi punido por isso

por_Alessandro Soler e Ricardo Silva de_São Paulo

Primeiro chegou uma reivindicação automática de autoria pelo YouTube. Depois outra. E uma música sua foi silenciada no Instagram. O compositor Lando Nassy demorou um tempo a entender o que acontecia.

“Eu estava simplesmente subindo canções minhas pela primeira vez nas plataformas, e os sistemas automáticos delas devolviam mensagens de que as músicas já tinham sido publicadas anteriormente. Pior: que a titularidade era de outros”, relembra esse autor ou coautor de dezenas de obras cadastradas na UBC, de gospels e sertanejos a forrós e arroxas.

Lando começou a pesquisar e percebeu que as canções publicadas por outros eram, na verdade, suas guias — as gravações com razoável qualidade técnica que muitos compositores fazem para poder circular suas criações entre produtores e potenciais intérpretes interessados. Foram 12 as guias do artista roubadas e publicadas com nomes aleatórios de cantores e compositores. Basicamente, gente que não existe.

Por trás dessa apropriação, porém, está um esquema bem real.

“Afeta sobretudo o mundo do sertanejo. E numa escala que nos surpreendeu muito”, descreve Bruna Campos, ela própria cantora e compositora, representante da UBC em Campo Grande e dona de um perfil no Instagram e um canal no YouTube com, somados, mais de 100 mil seguidores ávidos por suas dicas práticas sobre direitos autorais, produção, mercado musical.

Em suas frequentes lives, Bruna responde a perguntas sobre o funcionamento do mercado musical. Por isso, começou a ser abordada por seguidores com relatos semelhantes sobre o roubo de suas guias.

“Fiz um vídeo ensinando as pessoas a procurarem suas guias nas plataformas. Uma enxurrada de gente respondeu que encontrou coisas suas. O problema é a circulação indiscriminada dessas guias, algo comum no mundo sertanejo. Se não é através desses grupos, é em audições às quais vão dezenas de pessoas, gente não necessariamente envolvida diretamente com o meio musical. Muitos compositores têm medo de denunciar. Ninguém sabe ao certo o tamanho do poder de quem está por trás desses crimes”, pondera.

Uma guia do associado Murilo Huff, estrela nacional do sertanejo, foi publicada ilegalmente em nome de um fake no Spotify, conta Bruna. Outro autor afetado tentou subir suas canções pela distribuidora digital oneRPM, cujo bom sistema de filtragem acabou lhe revelando que elas já tinham sido colocadas na plataforma por meio de distribuidoras estrangeiras pequenas, e em nome de outras pessoas.

“Depois de o Lando me procurar pela primeira vez contando o caso dele, comecei a receber uma chuva de denúncias semelhantes. Estamos diante de um esquema grande e disseminado. Há uma onda de roubos de guias para publicação ilegal nas plataformas em nome de pessoas que não existem, mas que, claro, recebem a execução pública e os royalties pela execução”, ela sentencia.

Afetou também a associada Carla Galvan. Carioca, ela compõe sertanejo e, a exemplo de Nando e outras vítimas, compartilhou criações suas em grupos de WhatsApp que reúnem produtores, intérpretes e criadores do gênero, de várias partes do país:

“Um parceiro meu de composição recebeu a denúncia de que essa criação nossa apareceu como sugestão de audição no Spotify, numa playlist algorítmica”, ela recorda. “A gente começou a investigar, viu que a canção tinha sido subida por uma agregadora pequena, que, por sua vez, parece que tinha terceirizado o serviço a outra. Mandei vários emails pra eles, quase todos voltaram com mensagens de que os usuários não existiam. Mas uma pessoa me respondeu dizendo que eu teria que comprovar que a autoria era minha.

“Fiz os prints todos, levantei as provas de que a música era de minha autoria com meus parceiros. Até foto da gente criando eu mandei. Tudo. Recebei uma resposta de que ia demorar o processo. Em dois dias, tiraram a música. Voltei e perguntei se a gente conseguiria o contato da pessoa que fez isso, porque quero punir judicialmente. Ela disse que não poderia compartilhar dados de clientes. Perguntei, então, se eles próprios tomavam alguma atitude, mas nunca tive resposta”, afirma Carla Galvan.

Algumas das canções subidas ilegalmente chegam a acumular milhares de audições. Até que um take-down (derrubada) venha, o dinheiro gerado de royalties vai para os falsos titulares. Sabe-se que o digital paga pouco, mas a grande capilaridade aparente do esquema poderia estar resultando em valores consideráveis para os criminosos. Um levantamento do repórter Rodrigo Ortega, do portal UOL, chegou a 209 perfis de sertanejos que não existem na vida real publicando coisa de 444 guias roubadas. Mas poderiam ser muitas mais, ninguém sabe ao certo.

Nos grupos de compositores há cada vez mais denúncias de casos assim. No Spotify a detecção da fraude é mais complicada porque não são os próprios autores que sobem suas canções, mas sim as distribuidoras digitais. Então, quando não surge um aviso automático da distribuidora de que a música já está publicada, o autor prejudicado precisa contar com a sorte de uma playlist algorítmica ou a rádio de determinado artista oferecer aquela guia. Se não for assim, pode não encontrá-la nunca.

A Revista UBC procurou as delegacias de crimes cibernéticos em dois dos estados onde o sertanejo é mais forte — São Paulo e Goiás — e não conseguiu uma resposta sobre a existência de investigações atualmente em andamento sobre o esquema. Muito poucos autores parecem ter feito denúncias formais. Não se tem notícia de ninguém diretamente investigado nem, muito menos, punido pelas fraudes.

“Todo o sistema está pensado para te desestimular. É preciso investir dinheiro em advogados, preencher boletins burocráticos nas delegacias com informações que você não tem sobre os criminosos… E a gente é compositor pequeno, que está lutando aí para fazer um nome… Você acaba desistindo”, lamenta Carla Galvan.

Nando Lassy diz estar fazendo uma investigação por conta própria:

“Sabemos que tem gente que se infiltra nesses grupos de produtores em que os compositores compartilham as guias e fica tentando tirar a vantagem que for. Tem caras no meio que vendem aos compositores umas listas de transmissão com contatos de produtores e intérpretes, se oferecem para mediar, fazer a ponte… Infelizmente, no sertanejo está normalizada a prática de mandar as guias meio sem controle para todo mundo. A prova de que quem está por trás é gente metida nesses grupos é que, quando comecei a denunciar publicamente, várias canções minhas que as plataformas não tinham derrubado acabaram saindo ‘sozinhas’.”

Carla conta que os autores das guias até tentam se proteger de alguma maneira:

“A gente grava uma assinatura sonora no final, com os nomes de quem participa, quem escreveu… No caso da minha música publicada ilegalmente no Spotify, nem essa assinatura os bandidos tiveram a preocupação de tirar. A certeza da impunidade é total. Acredito que produtores mal-intencionados, ou falsos produtores, estão pegando as canções que recebem e fazendo esse cadastro. É alguém que entende o funcionamento da máquina.”

A proliferação de perfis falsos e falsas declarações de autoria deveriam estar entre as principais preocupações dos gestores das plataformas de música por streaming. O problema ganhou escala com a popularização das ferramentas de inteligência artificial e está apenas começando. Esta é a opinião de Cláudio Lins de Vasconcelos, advogado especializado em direito autoral e sócio do escritório Lins de Vasconcelos e Carboni Advocacia, do Rio de Janeiro.

“Antes de tudo, é preciso lembrar que as ‘guias’ são, para efeitos autorais, fixações de uma obra musical. Sua mera existência, anterior a qualquer cópia, já é suficiente para comprovar sua originalidade e a colocar sob proteção legal. Quem faz uso dessa obra sem autorização do titular viola direitos patrimoniais de autor. Se deixar de mencionar o nome dos autores, violará também seus direitos morais e, se avocar para si a autoria, ainda que sob pseudônimo, cometerá plágio. Havendo vantagem financeira, como no caso há, é possível que estejamos diante, ainda, de um estelionato”, enumera o especialista, que elenca os castigos aos quais estão sujeitos os criminosos:

Além de indenizar o autor pelos danos materiais e morais sofridos, o responsável pela fraude pode ser condenado a até 4 anos de reclusão, mais multa, pelo crime de violação de direito autoral (art. 184 do Código Penal-CP).

A até 8 anos de reclusão, mais multa, se for enquadrado também por estelionato, agravado pelo fato de que a fraude foi cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais ou meio análogo (art. 171, § 2º-A do CP).

A pena do estelionato poderia ser aumentada em até 2/3 se o servidor da plataforma estiver localizado no exterior, como neste caso está (art. 171, § 2º-B do CP), o que a levaria para além dos 10 anos.

Em tese, poderíamos chegar a uma pena máxima superior a 14 anos de reclusão, mais multa.

Para Lins de Vasconcelos, não é fácil —mas, sim, viável — combater os criminosos:

“Desde que seja possível identificar a origem dos arquivos fraudulentos e, principalmente, seguir o dinheiro. Nada disso é simples, mas é tecnicamente possível. Talvez seja mais fácil investir pesado em prevenção, em políticas robustas de compliance autoral, que ofereçam um mínimo de segurança ao menos quanto à identidade do destinatário dos recursos arrecadados. Talvez seja necessário acelerar o uso de mecanismos de registro digital em blockchain, por exemplo. Este é um debate técnico em andamento, mas que se tornou urgente.”

A UBC procurou as pequenas distribuidoras digitais estrangeiras responsáveis por subir as canções de artistas como Carla Galvan e Lando Nassy, mas não obteve respostas. O Spotify enviou à Revista uma nota em que, essencialmente, atribui a responsabilidade por checar a autoria a quem sobe as músicas:

“O Spotify depende de nossos provedores de conteúdo para verificar os direitos autorais por trás do conteúdo que eles nos entregam. Os detentores de direitos podem denunciar conteúdo infrator ao Spotify por meio de nosso formulário. Quando identificamos manipulação de stream, tomamos medidas que podem incluir a remoção de números de streaming e a retenção de royalties. Isso nos permite proteger pagamentos de royalties para artistas honestos e diligentes.”

A plataforma não esclareceu se tem um método proativo para buscar e derrubar fraudes do tipo.

Já o YouTube, também procurado, enviou um longo comunicado em que detalha como funciona seu sistema de detecção de fraudes do gênero: "Nosso pacote de gerenciamento de direitos autorais concede aos detentores o controle sobre os materiais deles no YouTube. Ele usa a correspondência do Content ID, que é a melhor tecnologia do mercado para detectar potenciais violações de conteúdo. O pacote oferece três ferramentas: um formulário on-line público da DMCA disponível para os bilhões de usuários que acessam o YouTube; a Copyright Match Tool, nossa ferramenta criada especificamente para criadores de conteúdo e disponível para mais de um milhão e meio deles; e, por fim, o Content ID, nossa solução empresarial para quem precisa gerenciar direitos em larga escala, como gravadoras, estúdios de cinema ou associações de gestão coletiva de direitos autorais. Depois de fornecerem arquivos de referência, os usuários do Content ID e da Copyright Match Tool receberão automaticamente notificações sobre vídeos enviados que exibirem as obras criativas deles."

“As plataformas não assumem responsabilidade nem banem os infratores”, rebate Bruna Campos. “Desde que começamos a denunciar em redes, já recebemos notícia de música de compositor da UBC que foi gravada por artista fake e está publicada impunemente no streaming. Tem um rapaz que achou um monte de fonogramas da Chantecler, vários que só tinham saído no físico… Os criminosos renomearam com outros artistas e publicaram em listas de nomes genéricos. Délio e Delinha, que são a dupla mais querida do Estado do Mato Grosso do Sul, tiveram 200 fonogramas seus subidos fraudulentamente, em perfis falsos criados em nome deles. Se não entrar a polícia e montar uma megaoperação nacional para já, isso não vai só continuar; vai piorar.”

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