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Pra dentro da cabeça

Por que o Natiruts permanecerá como parte fundamental do patrimônio cultural brasileiro, para além da turnê de despedida que acaba de começar

por_Eduardo Fradkin do_Rio

Por que o Natiruts permanecerá como parte fundamental do patrimônio cultural brasileiro, para além da turnê de despedida que acaba de começar

por_Eduardo Fradkin do_Rio

Campeã mundial de ouvintes no Spotify, a americana Taylor Swift foi notícia no fim do ano passado por ter quebrado o recorde de público do Allianz Parque (SP), ao fazer shows lotados em três dias. Impressiona, portanto, um nome brasileiro ter marcado quatro apresentações no mesmo estádio, no próximo mês de agosto, e esgotado os ingressos de todas as datas com antecedência. O fenômeno em questão é a banda Natiruts, que promete arrastar multidões pelo país em sua turnê de despedida, "Leve Com Você", iniciada em 8 de junho. No Rio de Janeiro, duas apresentações haviam sido marcadas, para os dias 15 e 16 deste mês, no Jockey Club; porém, devido à alta procura por ingressos, acabaram transferidas para o estádio Nilton Santos, o Engenhão (que já recebeu Roger Waters, Red Hot Chili Peppers e... Taylor Swift).

A impressionante capacidade de atrair público é uma constante na trajetória da banda. No início, ainda com o nome de Nativus, o sexteto fez circular uma fita demo que lhe valeu um bom número de seguidores, num tempo em que rede social era apenas um objeto de pano para duas ou três pessoas se balançarem numa varanda.

“A gente é uma banda de Brasília, considerada a capital do rock. E a gente veio com uma proposta totalmente diferente, um reggae bem raiz, no princípio. Em 1996, gravamos uma fita cassete com seis músicas e a divulgamos entre amigos. Rapidamente, foram surgindo mais cópias. Essa fita rodou o litoral do Brasil, porque foi levada para praias do Nordeste ao Sul por moradores aqui de Brasília, que têm o costume de viajar para outras regiões do país no fim de ano. Em 1997, fomos fazer nosso primeiro show fora de Brasília, em Porto Alegre, no auditório Araújo Vianna, e tocamos para mais ou menos 3 mil pessoas. Foi uma surpresa pra gente! Tudo graças àquela fita cassete”, conta o baixista Luís Maurício.

Luís Maurício e Alexandre Carlo: os dois membros originais que participaram de todas as formações da banda

Outro efeito da tal fitinha — que era facilmente ‘pirateada’ em aparelhos double-deck (hoje, relíquias de arqueologia musical) — foi ter criado uma aura de mistério sobre sua procedência, já que não havia encarte com informações.

“No nosso primeiro show, à beira de um lago num clube de Brasília, já havia um público bem expressivo, mais de 400 pessoas. A galera que estava lá conhecia algumas músicas. Já tinha gente cantando 'Presente de Um Beija-Flor' e 'Liberdade pra Dentro da Cabeça', mas sem nem saber que a banda era de Brasília. Muita gente pensava que a gente vinha de Salvador, do Rio ou de outra cidade praiana”, lembra Luís Maurício.

Foi bem longe da praia, no campus da Universidade de Brasília (UnB), que nasceu o Nativus, mais tarde rebatizado de Natiruts. Luís Maurício estudava Arquitetura, e o cantor e compositor Alexandre Carlo cursava Ciências da Computação. Os dois são os únicos integrantes presentes em todas as formações da banda, ao longo dessas quase três décadas. Eles se conheceram no time de futebol da universidade, que concentrava alunos de vários cursos. Alexandre guarda na memória uma apresentação realizada no subsolo daquela instituição de ensino, antes da estreia “oficial” à beira do lago.

“A banda ainda nem tinha todos os integrantes que acabaram sendo da formação inicial. Éramos quatro. Eu lembro que o baterista... não tinha bateria. A esposa do nosso baterista tinha ficado grávida, e ele teve que vender o instrumento. Daí, ele usou um surdo de escola de samba para fazer a marcação do reggae”, conta ele.

Luís Maurício relata outra ocasião em que o surdo fez as vezes de kit de bateria: “Foi num aniversário na casa de um amigo, o Rafinha. Foi um show para umas 60 pessoas, bem improvisado.”

Companheirismo e ídolos em comum: os dois colocam Gil, Luiz Melodia e Ziggy Marley entre os parceiros mais memoráveis
Companheirismo e ídolos em comum: os dois colocam Gil, Luiz Melodia e Ziggy Marley entre os parceiros mais memoráveis

Curiosamente, essas sessões intimistas não tiveram o público mais escasso da história da banda. “Teve uma vez que a gente tocou numa exposição agropecuária em Brasília, chamada Pangaré do Cerrado. Fomos a convite de um amigo do curso de Agronomia da UnB. Foi nosso show mais vazio. Basicamente, tocamos para o pessoal que estava bebendo no bar (do evento)”, recorda-se o baixista.

Se a performance tivesse sido filmada, “Ao Vivo no Pangaré do Cerrado” renderia um DVD divertidamente constrangedor, que poderia ser complementado com outro registro impagável:

“No início de carreira, quando ainda não tínhamos tocado em Belo Horizonte, chegou a notícia de que a gente ia se apresentar no Mineirão. Quando chegamos lá, estavam montando um palco gigantesco no estacionamento. Falamos um para o outro: ‘Vai ser um showzão!’. Aí, chegou o produtor local e avisou que o nosso show seria ali do lado. Falamos: ‘legal, então vamos para o Mineirinho’. Mas não era no Mineirinho. Era no Mineiríssimo, um barzinho perto do estádio”, revela Luís.

Nascido em Minas, ele estará com o Natiruts em Belo Horizonte em novembro, na recém-inaugurada Arena MRV, o estádio do Atlético Mineiro.

A turnê final, somada a imagens históricas da banda, poderá dar origem a um documentário sobre o Natiruts. Segundo Luís, a ideia existe, mas não há algo concreto à vista, por enquanto. Engajado no ativismo da cannabis medicinal, o baixista, que é presidente da Associação Brasileira de Cannabis e Cânhamo Industrial, terá mais tempo para dedicar a essa atividade depois que a turnê acabar. Já Alexandre manterá o foco na música: “O meu plano é continuar compondo, que é o meu ofício mesmo. Eu sempre compus para o Natiruts; as músicas são minhas. E vou continuar, só que em outros estilos, não só me colocando enquanto artista de reggae. Vou compor para outras pessoas, vou lançar canções e álbuns. Vou lançar coisas em carreira solo mesmo”, afirma.

Conhecido por incorporar influências da música brasileira nas suas composições, Alexandre indica que não fará algo radicalmente diferente do que os ouvintes do Natiruts esperam: “Não é uma pretensão ser diferente, não. É muito difícil, né? Até porque tem 30 anos que eu faço músicas, né? É como os dribles que um jogador de futebol inventou. Ele não vai inventar outros."

“O Alexandre sempre disse: ‘Não vamos repetir fórmula. Vamos sempre procurar agregar outros estilos, outros ritmos e outras culturas nas nossas músicas’. Um dos motivos para fazer essa turnê de despedida é que a gente já explorou artisticamente quase todas as possibilidades. Muitas vezes, extrapolamos as fronteiras do reggae”, afirma Luís.

Para Alexandre, o reggae é a espinha dorsal do Natiruts, mas a sua flexibilidade tem limites: “É diferente do rock, né? No rock, você pode gravar uma balada, um hardcore ou uma coisa meio blues. Mas o reggae é mais complicado. A fronteira rítmica dele é bem definida”, analisa o compositor.

Acredito que a marca Natiruts nunca vai acabar. Os álbuns estão aí. E a banda volta na hora que quiser voltar.

Toni Garrido

O espírito de exploração musical é evidenciado pela variedade de artistas que já tocaram ou fizeram parcerias com o Natiruts, do rapper L7nnon à cantora Ivete Sangalo, passando por Ed Motta, Roberta Campos, Rodolfo Abrantes (ex-vocalista do Raimundos) e muitos outros. De todos esses, dois provocaram uma emoção especial em Luís e Alexandre: Gilberto Gil e Luiz Melodia.

“Gilberto Gil é uma entidade, minha maior referência musical. Eu tocava em bares de Brasília, muito antes do Nativus, e tinha um bloco do meu set que era só Gilberto Gil. Então, quando tive a oportunidade de gravar com ele ‘Vamos Fugir’, que é uma música que eu toquei mil vezes nos bares, foi a realização de um sonho. É como gostar de futebol e jogar com o Pelé. Outra participação incrível foi a do Luiz Melodia. Eu sempre ouvia os discos dele na casa dos meus pais. Quando a gente foi gravar o nosso ‘Acústico’ no Rio de Janeiro, e ele entrou com aquela voz marcante em ‘Pérola Negra’, eu me lembro de arrepiar o corpo inteiro”, confessa Luís.

Alexandre Carlo cita os mesmos nomes e inclui um terceiro: “Sempre fui fã do Melodia, e meu falecido pai era ainda mais do que eu. Então, para mim, foi um momento muito bacana cantar o grande clássico ‘Pérola Negra’ com a aprovação dele. Destaco também o Gil, pela história dele com o reggae, e Ziggy Marley pela representatividade. Ele representa a família Marley, e o Bob Marley é o cara que fez o reggae ser o que ele é fora da Jamaica. Se não houvesse o Bob Marley, o reggae talvez fosse como a salsa, um estilo caribenho bem nichado.”

O segundo disco do Natiruts, “Povo Brasileiro” (1999), foi produzido por outro ídolo de Luís, o também baixista Liminha. “Muito do que eu aprendi no contrabaixo foi tocando as músicas do Gil, aquelas dobradinhas com o Liminha, que tinham muitas linhas de baixo fantásticas”, diz. O produtor, muito conhecido no rock e na MPB, também se deleitou com o trabalho.

“Eu tenho um certo know-how de reggae. Gravei na Jamaica com os Wailers (banda de Bob Marley), no Tuff Gong (estúdio onde Bob Marley registrou suas canções), e apliquei esse conhecimento na gravação que fiz com eles. Quem me convidou para produzir o disco foi o Torcuato Mariano. O Alexandre Carlo me chamou muito a atenção, por ser um compositor de mão cheia. Ele trazia um pouco de MPB para o que escrevia. Não era uma cópia do reggae jamaicano. Tinha personalidade”, afirma Liminha à Revista.

A conexão via Torcuato Mariano foi fruto de uma decisão empresarial acertada da banda brasiliense. Depois de lançar seu primeiro CD de forma independente, os músicos do então Nativus passaram a cumprir duplo expediente como comerciantes e a vender os discos pessoalmente nos locais onde faziam shows, além de levá-los a tantas lojas quanto pudessem. Acabaram vendendo 40 mil cópias nesse esquema de guerrilha e atraíram a atenção de grandes gravadoras. De repente, várias delas bateram à porta da banda ao mesmo tempo. A preferência pela EMI foi justamente pelo fato de o diretor artístico ser Torcuato, um guitarrista que o sexteto de Brasília admirava. “Ele mostrou um carinho muito grande com a gente. Realmente, foi uma parceria de sucesso. Depois que a gente assinou com a gravadora, a gente vendeu mais de 500 mil discos”, conclui Luís.

O sucesso internacional chegou também para o Natiruts. Talvez o álbum com maior repercussão fora do país tenha sido “Acústico”, de 2012, não só pelos arranjos criativos das músicas como pelo registro visual, lançado em forma de DVD. A gravação foi feita no Mirante Dona Marta, com uma vista deslumbrante do Rio de Janeiro.

“Foi um trabalho que nos projetou muito fora do Brasil”, opina o baixista. “Quando a gente começou a banda, até pensou que poderia estourar no Brasil. Mas não pensou que lotaria por dois dias a casa de shows Luna Park, em Buenos Aires, com quase 10 mil pessoas por noite. Em Santiago, nosso primeiro show foi para 300 pessoas no subsolo de um bar. Anos depois, a gente estava no Movistar Arena, que é a maior casa de shows da cidade, tocando para 12 mil”, continua ele. “Em Portugal, tivemos o nosso maior público num show só nosso, sem ser num festival com outras atrações. Foi no evento Festas do Mar, de 2014, em Cascais. Foi um show gratuito na frente da praia, para 80 mil pessoas. Para a gente chegar ao lugar foi uma batalha, com motociclistas da polícia abrindo caminho.”

Ao comentar apresentações memoráveis, Alexandre também se diz surpreso com algumas no exterior. “Quando você vai tocar em festivais fora do Brasil, espera um público, no máximo, atencioso. Afinal de contas, a galera não vai conhecer as suas canções, né? No Chile, participamos de um festival chamado Frontera. O headliner era o Snoop Dogg, que ia tocar de noite. Nós chegamos para tocar de dia. Tinha umas 50 mil pessoas. Todo mundo conhecia os nossos hits. A galera cantou umas seis músicas, e parecia que a gente estava no Rio Grande do Sul ou na Bahia. Eu não esperava que a nossa música se espalhasse pela América Latina dessa forma. E eu não sei, até hoje, o porquê. A gente não gravou em espanhol, não houve um plano especial para a região”, alega o compositor.

A resposta talvez esteja justamente na ausência de um plano de marketing. Para um dos pioneiros do reggae no Brasil, o cantor Toni Garrido, da banda Cidade Negra, a autenticidade é uma das grandes qualidades da banda brasiliense:

“Eles (do Natiruts) nunca se preocuparam muito se a música era de dançar ou não era de dançar. Naturalmente, dá para dançar, mas eles sempre se preocuparam mais em trabalhar o verbo de uma forma muito interessante”, define Toni. “É uma banda de uma geração muito madura em relação à consciência coletiva. É muito nítida a relação que o Natiruts tem com o reggae jamaicano, mas conseguiu colocar ali um tempero brasileiro. Eu acredito que a marca Natiruts nunca vai acabar. Os álbuns estão aí. E a banda volta na hora que quiser voltar.”

1. Deixa o Menino Jogar

É uma música com uma mensagem social muito forte e com esse toque brasileiro da capoeira. Tem uma frase muito forte que fala que "a saúde do povo daqui é o medo dos homens de lá/ a consciência do povo daqui é o medo dos homens de lá".

2. Reggae de Raiz

É uma das minhas músicas favoritas do primeiro disco e fala da contemplação da natureza. Tem algumas frases que me marcam muito, como "hoje estou consciente da trilha que devo seguir / para encontrar o meu lugar". Quando você tem uma meta e sabe aonde quer chegar, isso te dá força para cumprir teus objetivos.

3. Pedras Escondidas

É uma música bem leve, um lado B. É uma colaboração minha.

4. Palmares 1999

Tem uma mensagem social e racial muito forte. Fala de como a História é contada para a gente. O descobrimento do Brasil, que não foi descoberto, porque os indígenas já estavam aqui. Essa história é contada pelos portugueses, pelos brancos. Essa música já foi tema de redação de vestibular.

5. Andei Só

Foi quando a gente flertou com o xote, o baião, o forró. É um reggae, mas tem essa fusão com o xote. E me lembra uma história: acho que foi o Gilberto Gil que, certa vez, apresentou o reggae para o Dominguinhos. Ele escutou o reggae e disse: "isso é um xote muito mais ou menos!". Acho que, com essa música, a gente conseguiu juntar muito bem esses dois estilos tão próximos.

6. Leve Com Você

É a música que dá nome à turnê de despedida. Tem uma mensagem bonita de você levar só as coisas boas das suas experiências.

7. Quero Ser Feliz Também

É uma música muito emblemática nossa. Tem uma mensagem muito simples, mas que o público mais adotou. Virou um dos nossos maiores hits.

8. Sorri, Sou Rei

É uma música do disco "Raçaman" e se tornou, talvez, o nosso maior abre-alas em Portugal. Chegou a ser uma das músicas mais tocadas nas rádios portuguesas e nos ajudou muito no boom que tivemos lá.

9. Canção Pro Vento

É uma música que eu fiz com a ideia de um despertar. A letra fala: "Agora eu sei que vou voar/ Pensamento criou asas". É uma música que acho bem bonita.

10. Tudo Vai Dar Certo

Essa música tem uma mensagem acima de qualquer religião. Fala de energia, da força do pensamento. Já teve quem dissesse que é física quântica em forma de canção. É uma das minhas músicas favoritas de todos os tempos do Natiruts. Eu gosto de entrar no YouTube e ler os comentários nos vídeos das nossas canções, e essa é a que tem o maior número de comentários. Ela fez muita diferença na vida das pessoas, principalmente na época da pandemia.

11. Natiruts Reggae Power

Foi uma música que surgiu quando a gente ia gravar nosso primeiro DVD, comemorando 10 anos de banda. O Alexandre falou para mim: 'a gente precisa fazer uma música diferente de tudo que já fizemos.' Faltando poucos dias para a gravação, fui de táxi para um ensaio e fiquei pensando num groove, numa linha de reggaeton, dancehall. Quando cheguei ao ensaio, comecei a tocar aquilo junto com o baterista. O Alexandre ficou ouvindo e, depois de um tempo, veio com um papel com a letra e me mostrou. Fiquei arrepiado na hora.

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